ENTREVISTA –
VEJA
30 de julho de
1997
Sou o Jararaca
O escritor mais festejado pela crítica diz que literatura
pode ser uma grande inutilidade e que um mundo
como o nosso é obra exclusiva do capeta
Mario Sabino
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"A Rua Aurora
dos velhos tempos em São Paulo, clássica por seus bordéis, seria um templo em
comparação às panelinhas literárias"
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Foto: Antonio Milena
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É um caso curioso, o do escritor paulista Raduan Nassar. Há 21 anos ele
tenta fugir da literatura, mas de tempo em tempo acaba enrolado em
relançamentos, homenagens e leituras públicas de obras suas. Foi o que
aconteceu nos últimos meses. Autor de apenas dois livros, o romance Lavoura
Arcaica e a novela Um Copo de Cólera, além de alguns contos
publicados aqui e acolá, Nassar, fazendeiro de profissão, é venerado pela
crítica literária como um dos melhores escritores brasileiros. A unanimidade a
favor é tanta que ninguém percebeu que a ligeira recaída do autor, o conto "Mãozinhas
de seda", escrito no ano passado, não é nada mais do que uma
"molecagem", como ele próprio o define. Antes de viajar para o
Oriente Médio, em companhia do diretor Luiz Fernando Carvalho, que prepara um
filme baseado em Lavoura Arcaica, Nassar concordou em falar a VEJA,
superando a sua aversão a entrevistas. Ele reafirma que não pretende voltar à
literatura e aproveita para verter seu copo de cólera sobre essa tal
modernidade.
Veja -- O brasileiro é essencialmente caipira, como acredita o
presidente Fernando Henrique Cardoso?
Nassar -- O brasileiro em geral não sei, que não sou sociólogo, mas posso falar
de mim. Me sinto caipira se acontece de eu entrar num shopping. Me sinto
caipira diante da parafernália eletrônica. Me sinto caipira diante da desenvoltura
urbana de certos cidadãos, uma desenvoltura que literalmente me faz mal. Me
sinto caipira diante da progressiva impessoalidade nas relações humanas. Me
sinto caipira porque sou contra o desperdício e contra essa nova mania do
usa-e-joga-fora. Tenho um amigo que vive me dizendo que, se é para ter rádio,
eu deveria trocar o meu. Então, também sou caipira por ainda gostar de rádio e
por ter o rádio que sempre tive. Agora, se eu disser que não dispenso logo cedo
uma boa horinha de música caipira, aí já vão dizer que, se não sou o Jararaca,
sou então o Ratinho. Pensando bem, acho que sou o Jararaca. Seja quem eu for,
que fique bem claro que me lixo para essa entidade que se identifica com o que
está aí e que porta o elegante nome de "homem moderno", que mais
parece griffe de moda. Mesmo quando se tranca no banheiro, esse homem está
sempre de celular no ouvido, o que é o fim da picada. Aproveito para repetir o
que o Carlos Drummond de Andrade disse há uns quinze anos nestas mesmas páginas
amarelas: isso não é civilização, isso é uma porcaria!
Veja -- Por que o senhor voltou a publicar e está aparecendo em público?
Nassar -- Meu nome vem circulando nos últimos meses, mas isso não quer dizer que
eu tenha voltado a escrever. Literatura para mim é coisa do passado. Não
acredito que se possa recuperar aquele impulso vital que leva alguém a
mergulhar de cabeça numa atividade. Depois que se perde isso, a gente tem mais
é que cair fora. Não se faz literatura para valer com paixão requentada. Mesmo
a literatura mais pessimista, aquela que afirma que o nosso mundo é o pior dos
mundos, acaba até se desmentindo pelo entusiasmo com que se expressa. Já
disseram que a voz sem entusiasmo jamais será ouvida.
Veja -- Mas o seu conto "Mãozinhas de seda" foi escrito no ano
passado.
Nassar -- Aquilo foi uma molecagem.
Veja -- Por quê?
Nassar -- Uma molecagem contra mim mesmo, pois dá seqüência à minha inequívoca
vocação para o suicídio autoral, como já disseram. No momento em que o seu
trabalho está sendo divulgado como nunca, publicar um texto como esse é o mesmo
que fazer um esparramo com o ventilador. A hipocrisia de intelectuais, a troca
de favores entre eles, o comércio de prestígio, tudo isso não acontece só no
Brasil. Não revelei nada de novo em "Mãozinhas de seda", só registrei
o que é consenso entre os próprios intelectuais. Os mais inseguros e
suscetíveis ficaram ouriçados, começaram a achar que a coisa é com eles, mas o
texto não tem endereço certo, não tem CEP, nem nada.
Veja -- Mas não há notícia de crítica ruim a um livro seu. É bom ser
unanimidade?
Nassar -- Duvido dessa suposta unanimidade dos críticos. Devem existir inúmeros
leitores que não gostam dos meus livros.
Veja -- O que o senhor acha da crítica literária brasileira atual?
Nassar -- Não sei se as gerações de críticos anteriores foram tão melhores, como
dizem. Às vezes penso que a crítica literária seria dispensável. Já aconteceu
de eu ler autores incensados por críticos de peso e me sentir um completo débil
mental por não conseguir enxergar tudo aquilo que eles viram. Acho
impressionante essa capacidade de construir edifícios teóricos sobre o nada.
Devemos tirar o chapéu para tanta imaginação. A crítica talvez seja importante
para divulgar obras que poderiam passar despercebidas, embora a duração de certos
livros dependa muito mais do boca-a-boca de leitores anônimos qualificados.
Veja -- As panelinhas literárias fazem parte do jogo ou dá para
evitá-las?
Nassar -- Nunca participei de panelinhas, e prefiro não falar nada sobre o seu
comportamento. Me limito a lembrar que a Rua Aurora dos velhos tempos em São
Paulo, clássica por seus bordéis, seria um templo em comparação a elas.
Veja -- O fato de ter abandonado a literatura não o teria transformado
em um personagem fascinante?
Nassar -- Abandonei o curso científico e pulei para o clássico, abandonei um
curso de letras na universidade, o curso de direito no último ano, a empresa
familiar assim que meu pai faleceu. Abandonei ainda uma criação de coelhos, o
jornalismo e outras coisas mais. Tudo somado, só levei a pecha de inconstante.
Por que só quando abandonei a literatura eu teria me transformado em personagem
fascinante? Não é esquisito?
Veja -- O senhor se sente mitificado pelos críticos?
Nassar -- Quem sabe? O que posso dizer com certeza é que exercício crítico e
mitificação não deveriam andar juntos, embora boa parte dos críticos empregue
toda sua vida e energia na construção de mitos. É um processo que vem de longe
e termina nas escolas. Os autores que constam dos currículos escolares acabam
desumanizados, são transformados em pequenos deuses. O resultado disso é que o
próprio ato de escrever é sacralizado, quando escrever é uma atividade como
qualquer outra. Pessoalmente, fui vítima desse ensino da literatura nas
escolas. Tanto que fiz segredo para minha família até as vésperas de eu ser
publicado -- tinha receio de que me tomassem por pretensioso. Isso sem falar do
massacre que a gente sofria nas livrarias. Era eu entrar numa livraria para
achar que não teria nada a acrescentar à montanha de coisas que já tinham sido
ditas, o que chegava a me levar a pensar em desistir dos meus objetivos
literários. Eu não me dava conta então de que escrever tem muito a ver com
história pessoal, muito a ver com exorcizar condicionamentos, fantasmas,
demônios e sabe-se lá mais o quê. Nesse sentido, escrever é uma atividade
incomparavelmente mais acessível e eficiente do que um divã de psicanalista.
Acho até que parei de escrever porque me dei alta na auto-análise que fazia.
Veja -- Como a literatura deveria ser ensinada nas escolas?
Nassar -- Não sei, só desconfio de que ela não deveria ser ensinada como vem
sendo. De um modo geral, acho que os professores transferem para os alunos
gostos e critérios pessoais, o que acaba formando um rebanho destinado a adorar
certos nomes. Talvez se devesse treinar o aluno a pensar com a própria cabeça,
a ser ele mesmo na sua relação com as leituras -- supondo-se, é claro, que o
professor também conseguisse pensar com sua própria cabeça.
Veja -- Qual a função da literatura hoje, se é que ela tem alguma?
Nassar -- Para quem faz, seria se ocupar em fazer. Para quem lê, se ocupar em
ler. As duas ocupações seriam bons recursos para ludibriar a existência, o que
não é pouco, sobretudo se se tratar de uma literatura portadora de reflexão
sobre a vida. Escritores e leitores de uma literatura assim corresponderiam à
parte da espécie que não consegue se ajustar a esse mundo. Uns e outros sairiam
da sua solidão na medida em que a leitura promoveria um encontro entre eles.
Agora, do ponto de vista de uma função social mais ampla, não consigo enxergar
nada com clareza. Pode até ser uma grande inutilidade.
Veja -- O senhor vai ao cinema e ao teatro?
Nassar -- Há muitos anos não vou ao cinema e nem me lembro da última vez que fui
ao teatro. Em parte por preguiça, mas sobretudo porque perdi o interesse. Não
me faz falta. Acontece de eu ver um filminho em vídeo, mas é raro, e gosto
quando vejo. Acho que existe uma oferta exagerada do que chamam de bens
culturais. Como as informações passam por produto de maior valor no mercado,
isso explica por que existe tanta gente de língua de fora atrás de um grande
número delas. Me pergunto se as pessoas são mais felizes assim. Torço para que
sejam.
Veja -- E televisão?
Nassar -- Vejo um bocado de TV, talvez por comodismo. Assisto a telejornais e
acompanho novelas. No momento, estou começando a engatar em A Indomada.
Vi Renascer, por exemplo, com muito interesse. Seu autor, Benedito Ruy
Barbosa, se não estivesse na televisão, suponho que estaria escrevendo
romances. Boa parte dos bons ficcionistas está hoje na televisão. Curto muito o
trabalho de atores, e o Brasil tem alguns excelentes. Falar do Raul Cortez,
como Berdinazi em O Rei do Gado, é incorrer num lugar-comum. Gosto
também do trabalho daquele jovem, o Selton Mello, que teve seu melhor
desempenho em Tropicaliente, com momentos antológicos. Agora, como
televisão, o que mais me pegou nesses últimos tempos foi o Brasil Legal,
da Regina Casé. A zorra das suas reportagens acaba em um milagre incrivelmente
saboroso.
Veja -- Qual foi o último livro que o senhor leu?
Nassar -- Ficou difícil ler alguma coisa nos últimos anos por causa da diarréia
antidiscursiva que acabou atacando também a prosa. É uma palavra solta aqui, é
outra sem qualquer nexo lá, uma poesia que uma hora é pintura, aí não já não é
mais pintura, é música, é eletrônica, é o escambau. Confesso que não tenho
recursos e nem paciência. Fico até me perguntando se esses poetas imaginam que
o leitor deve se debruçar a vida toda sobre o que eles fazem, para poder sacar
alguma coisa. Me pergunto também se não existiria algo de comum entre essa moda
antidiscursiva e subnutrição mental. Continuo pensando que as palavras, como os
indivíduos, só ganham força quando se organizam ao lado de outras. Mas o
desmanche não vem acontecendo só na literatura e nas oficinas de carros roubados.
Veja -- Onde mais?
Nassar -- De uns anos para cá, o mundo perdeu a graça. Depois do desmanche do
Leste Europeu, andaram inclusive espalhando por aí que a História também foi
desmanchada. Parece que literatura e contexto político nunca andaram tão
sintonizados, é desmanche para tudo quanto é lado. Desmanche de estatais,
desmanche de amizades, de linguagem. Por sinal, tem poeta vestido com macacão e
mecânico de oficina lendo Joyce. Ficou difícil apostar em utopias, acho mesmo
que no mundo todo só se pode falar em geléia geral. Mas desconfio de que o
motor da História vai se acelerar logo mais com convulsões pela sobrevivência.
Afinal, este mundo não foi criado por um deus bondoso, o deus bondoso só reina
de fachada -- um mundo como o nosso só pode ser obra exclusiva do capeta.
Veja -- O senhor é um produtor rural insatisfeito?
Nassar -- Não há como não me sentir insatisfeito. Fala-se muito na falta de uma
política agrícola, mas tudo não passou de papo-furado até agora. Na minha
opinião, a questão agrícola brasileira só será encaminhada quando for alterada
a relação entre setor urbano e setor rural. O setor urbano está montado no
setor rural, e de nada adiantaria uma reforma agrária sem corrigir essa
distorção. Um exemplo: para beber em poucos minutos uma Coca-Cola, o produtor
rural precisaria desembolsar o equivalente a 10 metros quadrados de terra. É
isso mesmo: na região da minha fazenda, 1 metro quadrado de terra sai por 10
centavos. Passei a converter também em sacos de milho os valores de produtos e
serviços urbanos. Você precisa de trinta sacos de milho de 60 quilos para pagar
uma consulta médica de meia hora. A conversão que venho fazendo na minha vida
pessoal se tornou tão obsessiva que, se vou ao dentista, logo vejo nele um pé
de milho. Para não falar das margens de lucro da grande indústria e da atuação
do setor financeiro. Mas vamos parar por aqui que acabo saindo do sério.
Veja -- O que o senhor gosta de fazer nas horas vagas?
Nassar -- Gostar, gostar para valer, eu gosto mesmo é de dormir. Dormir é a
melhor coisa deste mundo. Nem leitura, nem diversão, nem uma boa mesa, nada se
compara. Sexo então é fichinha perto. É um momento de magia quando você, só
cansaço, cansaço da pesada, deita o seu corpo e a sua cabeça numa cama e num
travesseiro. Ensaio, prosa, poesia, modernidade, tudo isso vai para o brejo
quando você escorrega gostosamente da vigília para o sono. É o nirvana!
Veja -- E entre um nirvana e outro, o que haveria para fazer?
Nassar -- Há duas velhas sugestões. "Cultivar o seu próprio jardim",
que é a do Voltaire, cínica e pessimista. E a sugestão do poeta Jorge de Lima,
fervorosa e otimista: "Há sempre um copo de mar para um homem
navegar". No fundo, são dois trapaceiros, pois as alternativas são
ilusórias, em qualquer dos casos a gente acaba entrando pelo cano. Bom mesmo é
dormir.
