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José Rosemberg (1909 - 2005) |
São Paulo, 18 de Junho de 1988.
Caríssimo
Tarantino.
Estou deveras
satisfeito que vocês tenham bem aproveitado a recente viagem. Mais satisfeito
fiquei por terem apreciado Óbidos que é uma raridade. Só pessoas sensíveis,
como vocês, podem apreender em profundidade manifestações artístico-históricas
e com elas sentir grandes emoções estéticas.
Como eu
gostaria de andar com o simpático casal Neuza-Affonso por esse mundo afora! Com
o seu telefonema veio-me a imaginação voarmos até Paris ou Roma. Depois me
firmei na primeira. Tarantino e eu pertencemos a uma das últimas, senão a
última geração de médicos moldados na cultura francesa. Fomos formados no
universalismo do espírito francês e sua cultura cevada de humanismo. Aprendemos
a raciocinar com os famosos “Precis” tão científicos quanto românticos, que por
serem românticos não eram menos exatos, menos científicos que os áridos textos
anglo-germânicos. Que delicia ler, ainda hoje, a fisiologia de Hedon ou a
histofisiologia de Policard, as aulas de Dieulafoy e de Ramond. Fomos
“contaminados” com as letras francesas, desde Racine, Corneille, passando por
Molière, Maupassant, Stendhal, Flaubert, Zola, Balzac, Anatole France, até
Camus, Sartre e a “nouvelle vague”. Na filosofia, sem desprezar Kant e outros
tais, muito mais abertura nos deram: Descartes, Pascal, Meyerson e Bérgson.
Andam dizendo
que o pensamento francês está inferiorizado em vários campos do conhecimento. A
colocação não pode ser passivamente aceita. Ela é feita pelos que se submeteram
ao colonialismo cultural dos Estados Unidos. Nossa juventude está a este
atrelada. Desde a última guerra houve um desvio de 180 graus. Ela não mais
recebe o influxo da França cujo pensamento continua vivo. Sua ciência,
literatura, filosofia, no contexto humanístico e universalidade, estão 100
furos acima dos outros.
Paris ainda é
a capital do mundo!
Sabendo que
vocês tem as mesmas raízes culturais, integrados na história da França,
figurei-me que juntos poderíamos passar uns belos dias em Paris; deixemos Roma
para outra ocasião. Concebi, então, um programa, sem prejuízo do que vocês
também sugerissem, deixando os locais mais conhecidos e badalados, hoje
regurgitados de turistas barulhentos e beócios. Portanto, mesmo a contra gosto,
mas decididos rifaremos, pelo menos dessa vez, o Louvre, o museu d’Orsay (que
recebeu todo o acervo do Jeu de Pomme), o museu do Homem, Versailles,
Fontainebleau, Malmaison, Os Invalides e tantos outros museus e monumentos e
tantas outras coisas lindas que nos são familiares. Risquemos a Opera, os 240
teatros, os concertos e até Notre Dame que contemplaremos de longe. Deixemos
tudo isso para depois; convido-os para outras pedidas. Vamos para inicio de
conversa comer bem e barato. “Primo mangiare, dopo filosofare” já dizia nutrido
cardeal do inicio do século quando era tesoureiro do Vaticano. Nada de gastar
os tubos em antros como o Tour d’Argent com seu pato numerado para basbaques
como os das delegações oficiais brasileiras ou o Andruet com os seus 350
queijos diferentes. Comamos na Rive Gauche, como um francês médio. Se a grana
estiver curta, vamos ao Serail onde por 20 francos nos fartaremos com um
opulento omelete de cebolas, um “canard aux ollives” e um bom rouge. Assim
reconstituídos iniciaremos o nosso passeio. Já deixamos de lado os
impressionistas, mas um deles precisa ser revisto em toda a sua extensão;
Monet, no museu Marmottan. É a orgia das cores brotando das nimphéas e
glicínias, mais fascinantes que as da Orangerie e as que foram exportadas para
o museu de arte moderna de N. York. São quase duas centenas de pinturas, mas
detenhamo-nos ante um amanhecer brumoso que só de longe deixa visualizar o
porto de Havre. Como vocês sabem, essa tela com o título de “Impression Soleil
Levant” tem o valor histórico de ter dado origem ao nome de nova escola
pictórica: Impressionismo.
Monet, Renoir,
Manet, Matisse, Degas e outros não tendo sido admitidos no Salão Oficial,
fizeram em 1874 o Salão dos Recusados. Leroy, em sua coluna crítica do jornal
Charivary, espinafrou esses pintores em célebre artigo “A exposição dos
Impressionistas”. Disse que ali não havia pintura, mas só impressão delas e que
o próprio Monet o confessava com o titulo do seu quadro. “Afinal, os coitados
não passavam de uns impressionistas”. Mal sabia Leroy que com o seu termo
sarcástico criava um nome artístico que reinaria perenemente. As telas dos
impressionistas não têm preço, só ao alcance dos magnatas do petróleo. Sabendo
disso, saímos melancólicos. Acabamos de ler em uma vitrine as dezenas de cartas
desse gênio paupérrimo mendigando, aos marchands abastados, a esmola de lhe comprarem
uma tela por 50 francos (!) para adquirir remédios e pagar parte do aluguel
atrasado[1]. É
isso aí, vender ralos de privadas e cartões pornográficos sempre deram mais
dinheiro que arte e medicina...
O sol está
forte e por isso é o momento propício para revermos a Sainte Chapelle,
maravilha gótica, com 75 metros de altura, sem contrafortes, vãos imensos,
portanto quase só de vidro construída no século 13, ainda não ruiu por milagre.
É que foi mandada edificar por Luis IX, que canonizado virou santo. Seu
arquiteto era tão desconhecido que seu nome ficou impreciso, Montreuil ou
Monteau. Ah, hoje não se fazem mais arquitetos como antigamente! São cerca de
1200 vitrais com luminosidade celestial a contar histórias do velho e novo
testamento. Durante a última guerra foram desmontados e guardados em lugar
seguro. É uma festa para os olhos; sinfonia de luz, avassalante. Não há no
mundo coisa parecida. Coitado de Luis IX erigiu esse templo único para albergar
a coroa de espinhos de Cristo, fraldas do menino Jesus e um relicário contendo
leite do seio da Virgem Maria. Um salafrário de Boudouin, nomeado imperador de
Constantinopla, em troca de somas enormes que rasparam as arcas do erário,
prometeu enviar-lhe essas relíquias que nunca chegaram. Foi essa santa
ingenuidade que santificou esse rei crente e logrou-nos o espetáculo dos
vitrais mais antigos de Paris.
Ainda temos
tempo de ver St. Julian le Pauvre, Igreja gótica de interesse histórico.
Edificada em 1160, destaca-se pelos seus magníficos capitéis, verdadeiros
rendilhados de pedra. O interesse histórico é que aí se realizavam as
assembléias da Universidade de Paris; admiremos a bela e imensa poltrona, creio
de bronze, onde se sentava o Reitor. Esse ritual acabou no inicio de 1500,
quando os estudantes enfurecidos com a eleição fraudulenta de um novo Reitor,
quebraram a cara do Magnífico, destruíram os móveis e o coro da Igreja. As
bandalheiras e safadezas universitárias têm tradição e os estudantes de hoje, quando
malham o reitor, não estão inovando nada.
À noite, atrás
da Igreja de St. Julien, entremos num café cantante sui-gêneris, que fica num
subterrâneo uns 20 metros de profundidade. É o Caveau des Oubliettes que foi
prisão tétrica dos séculos 12 a 18. Luis XI, Carlos, o Belo, e até as rainhas
Ana d’Austria e Catarina de Medicis, tão sensível protetora das artes, trancafiavam seus
inimigos políticos e simples desafetos, nas masmorras profundas desse Caveau,
onde eram esquecidos e apodreciam. (daí o nome des Oubliettes). Desçamos os
desgastados degraus de pedra, tendo em cada lance porta de ferro fechando
lúgubres celas, até chegarmos num salão regurgitante de espectadores. Mal
sentamos e nos oferecem um cognac de 50 anos!
O maître jura pela sua autenticidade e fingimos que cremos. Enquanto
degustamos essa “raridade”, artistas de primeira plana executam danças
populares medievais, cantam, ao som de instrumentos, autênticos antigos
madrigais renascentistas nostálgicos. Por fim vem as “chansons pigalles” apimentadas,
maliciosas, eróticas e muito engraçadas. È impressionante pensar que o povo
parisiense já cantava essas canções licenciosas quando Estácio de Sá fundava a
cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro. Enfim, uma noitada mil furos superior
a que passaríamos no Moulin Rouge.
Hoje é
domingo. Se vocês forem à missa eu os acompanharei, se não forem iremos do
mesmo modo, porque Henrique IV tinha razão: “Paris vale uma missa”. Não iremos,
porém, a St. Germain, St. Sulpice, nem a Notre Dame e outros similares. Nestas
as missas, embora com mais pompa e brilho, São semelhantes às da Candelária no
Rio e da Sé aqui em S. Paulo. Vamos assistir uma missa empolgante, que nos
aproxime mais do Eterno, se é que ele existe. Vamos a St. Severin, outra
maravilha gótica esquecida, edificada no século XIII. A histérica sobrinha de
Luis XIV (não sei porque a chamavam de Grande Mademoiselle) brigou com sua
paróquia e por pirraça resolveu dotar St. Severin com tudo que fosse novidade
para maior eficiência do culto; inclusive trouxe da Alemanha notável órgão que
aqui está intacto até hoje. Ao som celestial desse instrumento ouviremos
ferventes oratórios. Depois, silêncio... Aí começa um sussurro, que vai se
avolumando, de vozes sem modulações que no crescendo avassalam toda a nave e se
eleva pela abside. É o mais autêntico canto gregoriano do século XI dos frades
beneditinos da Abadia de São Pedro de Solesmes, os quais se notoriarizaram pelo
cantochão que desenvolveram. Imensa paz nos invade e aí percebemos como o
gregoriano e o gótico se fundem para criar fundo clima de religiosidade. É como
se fossemos transportados para 800 anos atrás. A St. Severin é de gótico
flamejante e sua maravilha está no duplo deambulatório do coro; miríades de
nervuras do nartex retombam nas colunas semelhantes a palmeiras. Não há dúvida,
a maior manifestação artístico-estética da idade média, é o gótico.
Para não
quebrar o encanto vamos direto a Igreja de St. Denis (séc. X). Aqui neste
matagal de túmulos góticos estão os reis da França, as Rainhas e os Infantes.
Com a renascença esses monumentos se tornaram mais suntuosos. Catarina de
Médicis, que morreu 30 anos após Henrique II, teve muito tempo para erigir
suntuoso mausoléu para seu marido. Quando se viu esculpida como morta (como
mandava a tradição) ela que deixava apodrecer seus desafetos no Caveau des
Oubliettes, era muito sensível, e horrorizada, desmaiou. Os nobres que ali
estavam, todos raquíticos, não tiveram forças para levantá-la. Chamaram os
escudeiros para essa tarefa. Aventou-se, porém, que isso configuraria crime de
lesa-majestade, pois o augusto corpo real não podia ser tocado por mãos
plebéias. Então não houve outro remédio senão deixá-la caída sobre a laje fria
à espera que ela abrisse os olhos.
Terminada esta
visita, é claro que vem o desejo de admirar um monumento gótico intacto até
hoje, pois todas as igrejas da França de Alemanha (inclusive a catedral de
Colônia) e de outros países, sofreram, no tempo, reformas, restaurações, etc. A
própria Notre Dame, tão estética, que tinha na frontada 28 estátuas
renascentistas dos reis de Judá e de Israel foi danificada. Elas foram
arrancadas pela plebe durante a revolução (Ah! a cultura das massas!) que as
confundiu com os reis da França; as que hoje estão lá são reconstituídas ou
cópias. Vamos, pois, dar uma esticada a Chartres, saborear a única catedral
gótica pura desde o século XII. Por raro acaso escapou do vandalismo, das
revoluções dos bombardeios de duas guerras mundiais. Que dignidades ostentam
suas duas torres! A da direita é ainda românica e a da esquerda é gótica pura,
porque houve um intervalo de cem anos nas duas ereções. Entremos. No
semi-escuro permanente, vislumbramos no pavimento esculpido o labirinto que os
fiéis percorriam de joelhos para penitenciarem-se das fornicações com as servas
e com as donzelas devotas. Como são magníficos esses vitrais fabricados há 900
anos com o célebre “azul de Chartres” cuja fórmula permanece desconhecida. Na
portada há esta maravilha de estatuárias contando a vida de Cristo. Depois
desse banho de arte gótica, partamos para outras pedidas. Hoje pela manhã,
Neuza nos acompanhará se quiser, senão pode ir ao cabeleireiro e as compras.
Por dever de oficio, Tarantino e eu, iremos a rue Doutor Roux número 25,
visitar o Instituto Pasteur. Claro nem pensamos em ver toda aquela imensidão.
Vamos apenas saber em que pé estão, neste momento, as revolucionárias pesquisas
da biologia molecular na tuberculose: sondas de ADN para rápida detecção de
antígenos e anticorpos de todas as espécies de micobactérias, possibilitando
sua rápida identificação e diagnóstico sorológico específico. Antígenos
clonados para estimulação especifica de resposta dos linfócitos T com próximas
perspectivas de imunização especifica contra o M. tuberculosis e M. atípicas,
com emprego de antígeno produzido em quantidade por meio da recombinação do
ADN. Antígenos monocloniais selecionadores do mecanismo da resistência às
drogas eliminando esta completamente. Etc, etc, etc, Certamente valerá a pena
gastarmos uma manhã nisso que parece “science-fiction”.
Terminemos a
visita pelo lado emotivo. Vejamos a cepa original da BCG mantida viva até hoje.
Entremos na cripta onde dorme Pasteur cercado das virtudes cardeais, Fé,
Esperança, Caridade, às quais adicionaram uma quarta, a Sciencia. Visitemos o
pequeno apartamento, onde por caridade, viveu a viúva de Calmette. Este não
deixou nada; até seu livro “L’Infection Bacillaire de la Tuberculose” que foi
bíblia durante meio século, nada rendeu. Repito, vender postais eróticos dá
mais dinheiro.
À tarde
preparemos as forças para caminhar pelos quarteirões de Paris mais históricos,
todos datando de 1300 a 1700, havendo vestígios dos séculos anteriores.
Chegamos, pois, no Marais. Homenageando meus antepassados, comecemos pelos
quarteirões judeus. Aquela sinagoga é mais velha que o Brasil. O frontispício
está escorado por enormes estacas que ali estão a decênios para mais comover os
visitantes que logo são solicitados a contribuir para a restauração do
Templo... Entremos no “Memorial do Judeu Mártir Desconhecido”, onde se
encontram os maiores repositórios de documentos do martírio judaico nos campos
de concentração nazistas.
Por
que nesta praça cercada de prédios centenários, encravaram esta construção do
futuro séc. 21, de acrílico, cimento e vidro?
É o Centro Cultural Pompidou. Para cá trouxeram o Museu de Arte Moderna.
São incríveis as exposições permanentes e especiais. Destas, tive a sorte de
ver em 1979 a exposição Paris-Moscou e em 1980 a Paris-Cairo. Combinamos não
entrar nos locais regurgitantes de turistas. Porém não obstante as cinco
milhões de pessoas que aqui vieram em 1987 (não dá pra acreditar) vamos entrar,
pois duas coisas precisam ser revistas: O instituto do som no sub-solo, onde
esse fabuloso Pierre Boulez descobre novos instrumentos e sons, e a biblioteca
de concepção ultra- revolucionária. Peçamos, por farra, algo esdrúxulo como o
comportamento da mulher e a moda na década de 1820. Dentro de uns 20 minutos
receberemos microfilmes, extratos de obras, artigos, ilustrações e “tapes” de
televisão com todos os esclarecimentos e bibliografia Entremos na cabine
apropriada e vejamos todo esse material. Como funciona o arquivo da biblioteca
não dá pra entender. Agora caminhemos pelas ruelas do Marais. Olhe ali a casa
onde morou Augusto Comte e, ao lado, entremos na primeira Igreja positivista.
Eis a casa em que viveu Lenine. No museu Carnavalet veremos quase tudo sobre a
Revolução Francesa e coisas desde Henrique IV até a Belle Époque.
O Marais
concentrou quase toda a nobreza e sua podridão. As famosas construções foram
chamadas “Hotel”. Este termo surge na língua francesa por volta de 1200. Ora
designava hospital (Hotel de Dieu), ora repartição oficial (Hotel de Ville) e
quase sempre enormes e suntuosas moradias e palácios. É o que vamos visitar. A
Place de Voges com seus arcos ainda tem cheiro do tempo de Henrique IV. Fazendo
sua volta passemos ou entremos nas casas onde nasceram, ou apenas moraram, Mme
de Sévigné, Bossuet, Richelieu e Victor Hugo; no 3º andar desta última,
habitava a bela Marion Delorme, a quem Hugo dedicou uma peça teatral com o seu
nome, certamente em pagados favores que ela lhe prestou; valia a pena subir
três altíssimos andares para descansar no regaço dessa deidade. Sabe-se que o
escritor pulava a cerca freqüentemente. Entremos nesse pavilhão antigo de
Henrique II, com os deslumbrantes apartamentos do rei e da Rainha; sabe-se que
nestes últimos nunca adentrou rainha alguma e sim uma dezena de favoritas.
Caminhamos até ao Hotel dos Brinvilliers; ficou afamado porque a marquesa desse
nome assassinou o marido e vários outros, principalmente, com nicotina.
Teríamos que visitar mais uns 40 a 50 hotéis. Impossível. Fiquemos somente com
uns poucos. Aquele ali é o H. de Sens, medieval, destacável pelas suas torres e
casas-fortes; são numerosos e imensos salões; a Rainha Margot primeira esposa
de Henrique IV, aí ficou exilada; cinquentona continuou com suas farras (tinha
rim quente, como se dizia lá em nosso S. José) e aplacava o fogo dos seus 50
escudeiros; vai daí, um destes, enciumado, matou o amante permanente. Margot
não deixou por menos, mandando decapitá-lo ante a entrada do Castelo, para
servir de advertência: cada escudeiro deveria aguardar pacientemente sua vez
respeitando rigorosamente o rodízio... Eis o H. Rohan com suas escadarias de mármore
e bronze levando aos apartamentos dos cardeais; o salão dourado é sufocante
pela majestade, lustros e tapeçaria. Uma vez por mês, nesse luxo, eram
recebidos plebeus a quem se ofertava brioche, com predica de que é melhor ser
pobre, pois isso alegra a Deus!... Hotel
Lamoignon residência de Diana da França, filha legitima de Henrique II (outro
pulador de cerca); posteriormente nesses salões pontificaram Racine, Mme de
Sévigné. Esta morava no Hotel Carnavalet. Viúva aos 25 anos; seu marido morreu
em duelo com o cara que andava comendo essa intelectual. Mme. Sérvigné era
mesmo inteligente (nunca agüentei ler suas famosas cartas), porém parece que
ela fazia uso não só da inteligência, como de seus encantos íntimos. H.
Polignac, de Clotilde de Vaux, inspiradora de Augusto Comte. Quem diria até
Comte pulava a cerca! – H. St. Paul, todo decorado com motivos orientais.
Carlos V por volta de 1360, aí instalou seu filho, Carlos VI, a quem os médicos
aconselharam a se divertir para combater as crises de loucura. Vai daí
promoveram-se, nestes vastos salões grená que davam acesso a mais de 30 quartos
discretos, as maiores rambóias, até que durante um certo “baile dos ardentes”,
as bicharadas tanto excitaram o jovem rei, que ele acabou lelé da cuca para
sempre. Carlos VI foi vitima de uma super dose do tratamento prescrito. Este
outro hotel é o Barbette, internamente todo forrado de cetim roxo e foi de
Isabeau da Baviera (tem seu túmulo na Igreja de St. Denis, onde já estivemos).
Essa ardente rainha lançou a moda dos bailes de máscaras, os quais logo
conquistaram os foros da maior suruba da paróquia. Aqui está o H. d’Abert; é o
mais discreto dos que vimos, tem porém bela fachada barroca; sua inquilina foi
a fogosa viúva do escritor Scarron. Fez amizade com Mme. Montespan da
“entourage” de Luis XIV, sendo por este recebida tornando-se governanta de seus
filhos bastardos. Rapidamente virou marquesa de Maintenon pela regra geral
vigente: abrir as pernas para o Rei e acordar marquesa.
Terminemos
esta longa caminhada visitando o Hotel Beauvais, riquíssimo e sufocante pelo
seu brilho. É tal a decoração que parece ornado de brilhantes. Cada sala é de
tom diferente. Foi da Catarina Bellier, primeira camareira de Ana d’Austria;
balzaquiana de 50 anos, quase consome Luis XIV que tinha apenas 16 anos; o
adolescente tanto bebeu da fonte generosa que virou um palito. Receitaram-lhe
gemadas de leite de corsa. Assim, entre gemadas e pimbadas foi definhando.
Quando a Rainha, que também tinha disso muita experiência conseguiu metodizar
os encontros com Catarina, o jovem soberano floresceu e doou uma fortuna ao
Senhor de Beauvais complacente marido da balzaquiana. O casal marques de
Beauvais (a regra continuou funcionando) adquiriu este enorme hotel que passou
a ser um marco de arte; mais tarde quando Mozart, com sete anos de idade, veio
à Paris foi aqui neste salão verde-musgo que ele encantou a todos tocando ao
piano suas próprias sonatas.
Terminando a
visita ao Marais, vem-me a mente que em São Paulo há, no Glicério, um prédio de
15 andares alugado a prostitutas desde o sub-solo até ao topo; por isso é
chamado treme-treme. Vimos que o Marais, quando abrigava a dourada nobreza
francesa era um vastíssimo treme-treme.
É obrigatório
no programa traçado reverenciar a memória de alguns vultos que povoaram nossa
formação cultural. Não iremos ao Invalides com seu enorme mausoléu de pórfiro
vermelho, que trouxeram, em viagem de meses, da Carélia, dentro do qual
encerra-se em 6 esquifes aquele que foi Napoleão. Nem ao Pantheon, onde
descansam Voltaire, Rousseau, Zola, Victor Hugo, e Jaurez; ao lado de Berthelot
está sua mulher, que não se conhece, mas que recebeu essa honra porque morreu
no mesmo dia que seu marido (?!). Então, vamos somente ao Père Lachaise.
Visita-se obrigatoriamente o cemitério de Genova pelas obras artísticas dos
túmulos. O Père Lachaise se impõe porque aqui ninguém está morto; a imensa
maioria está viva em nossa cultura, na História. Entre as calmas aléias
detenhamo-nos diante Molière, Augusto Comte, Gay Lussac. Olha ali Musset, o
poeta lírico; é ele mesmo que auto observou as pequenas flexões de sua cabeça,
porque sofria de insuficiência cardíaca. Meu caro Tarantino sabe melhor do que
eu esse negócio desse sinal, porque conhece muito mais semiologia. Mais
adiante, encontramos Oscar Wilde que morreu no próbio, mas continua imortal.
Por outra aléia chegamos a Rossini; como esse fabuloso compositor de óperas,
100% italiano, foi morrer em Paris? Em
seguida passamos por Balzac, Proust, Paul Elouard, a divina Sara Bernhardt e a
incomparável Edith Piaf. Aquele túmulo coberto de flores é de Allan Kardec, mas
até hoje ninguém encarnou seu espírito para desespero de seus crédulos
seguidores.
Ali adiante
encontramos os maiores marxistas franceses, Barbusse, Thorez e Duclos. Paremos
diante desse muro branco, que parece imaculado, mas que outrora foi borrado de
sangue. Há 120 anos os remanescentes da Comuna de Paris se entrincheiraram
neste cemitério e os 147 sobreviventes foram nele encostados, fuzilados e
enterrados na vala comum. O general que comandou o massacre proferiu discurso
“profético”. “Graças a Deus, com a morte desses impostores e traidores, as
futuras gerações jamais ouvirão a palavra comunismo, porque ela desaparecerá
dos dicionários”. Essa clarividência profética sobre os (?) sociológicos,
revela bem a miopia de todos os militares.
O que há nesse
amplo cercado coberto? O pó de uma
história de amor que empolga as massas há quase um milênio. Vocês já a ouviram
inúmeras vezes, mas o amor é eterno e vamos relembrá-la Abelardo, teólogo
canonista da Notre Dame, incumbido pelo bispo Faulbert a ensinar filosofia à
sua sobrinha Heloísa, passou logo a compensar a aridez metafísica com aulas
práticas mais amenas e doces, ensinando-lhe o que hoje poderíamos chamar de
“cooper horizontal”. O piedoso bispo que vinha cevando a sobrinha para
desfrutá-la nos ócios futuros “condignitate” ficou uma fera e simplesmente
mandou castrar o atrevido teólogo. Este, com tão rude golpe, fundou o convento
de Paraclet do qual Heloisa se tornou abadessa. As cartas que Abelardo e
Heloisa trocaram até a morte atestam o mais puro amor platônico, não obstante
os lancinantes lamentos por essa abstinência obrigatória; agora aqui estão, por
fim, juntos há mil anos.
No final de
nossa visita, uma pausa naquela outra viela; debaixo daquele chorão frondoso,
uma lápide simples; ouçamos a pureza dos prelúdios e noturnos que ali ressoam:
estamos diante de Chopin.
Hoje é o
ultimo dia de Paris. Vamos encher os pulmões desse oxigênio que clarifica as
mentes no “quartier latin”. No percurso do “Boulemiche” fartemo-nos com os
livros aos montões nas bancas espalhadas pela calçada; nem precisamos entrar
nas livrarias. São obras novas e velhas, cientificas de todos os ramos,
políticas, sociológicas, filosóficas, literárias, artísticas e tudo mais. São
as editoras que se tornaram familiares desde nossa adolescência: Masson,
Larousse, Garnier, Gallimard, Plon, Payot... Chegamos em frente a esse templo
mágico que é a SORBONNE. Entremos só para aferir os cursos especiais além dos
curriculares. Os corredores regurgitam de jovens, pessoas maduras e velhas. Mal
podemos atingir os placares; há temas para todos os gostos: a mortalidade
maciça em Biafra, cintilograma da paratireóide nos acondoplásticos,
consistência da calota polar, genéticas dos platelmintos, o aramaico e o copta
na elaboração do velho testamento, Ramsés II e sua dinastia; a desnutrição da
infância no terceiro mundo e a responsabilidade do intelectual etc, etc. Há
professores e alunos para tudo.
À tarde no
Café de Flore ou Deux Magot, sentados nas mesmas mesas onde se reuniam os
existencialistas depois da guerra, assistamos o desfilar de toda a fauna de St.
Germain. Passantes apressados, colegiais, mágicos e cantores que depois esmolam
uma gorjeta, tocadores de acordeon, saxofone, pistão, correndo o prato por um
“sou’, mulheres de todos os naipes, prostitutas de mini saia, virtuosas de
short, vamps de calças colantes prateadas, as vestidas com fazenda transparente,
sem nada mais por baixo, travestis, pretos africanos, sheiks, com suas roupas
talares, batas brancas ou coloridas, hindus de turbante; é um espetáculo barato
e só custa os dois francos do café”.
À noite
poderíamos nos despedir no Lido ou no Moulin Rouge. Mas o trato foi fugirmos
dos turistas e desta vez ficar nas coisas típicas. Vamos então a Place de la
Contrescarpe, onde o cabaret Pomme de
Pin, celebrado por Rabelais, foi transformado hoje em audição dos
“chansonniers”. Não há cadeiras. Sentemos no chão. A bebida nos será passada de
mão em mão. Enquanto os artistas se apresentam o ambiente vai ficando cinzento
de fumaça de tabaco e de maconha. Desta vez não importa a poluição. São ótimos
“chansonniers” anônimos executando as músicas populares que estão na crista da
onda e as que são criadas aí no momento. São os futuros Aznavour, Bressant.
Piaf, Greco e muitos outros que, como estes, aqui também iniciaram suas
carreiras.
Com dor no
coração entramos no avião da Varig. No Galeão vocês ficarão e eu seguirei para
a Paulicéia. Restará a saudade dos agradáveis dias que juntos passamos. Quando
nos reveremos? Voltamos à rotina
estafante até quando e para quê?
Se chegarem ao
fim desta, dirão que sonhei acordado ao escrever este papo infindo. Tenho
justificativa. O poeta Aron dizia (estou copiando de seu último livro): “Il est
permis de rêver. Il est recommandé
de rêver. Sur les livres et les souvenirs. Sur la histoire e sur la vie ».
E esse formidável Proust que agora, há pouco,
visitamos no Père Lachaise proclamava : «Il vaut miex rêver sa vie que la
vivre, encore que la vivre ce soit encore la rêver »..
Recebam meu abraço afetuoso.
Sempre seu,
Rosemberg
[1] Vocês já
viram dezenas de vezes, nos livros, essa tela do Monet. Ofereço-lhes, porém,
uma reprodução miniaturizada que existe à venda no Museu Marmotan que acabamos
de visitar.